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Mulheres cirurgiãs são minoria, mas têm resultados melhores que homens


“Mulheres médicas são ambíguas, hermafroditas ou assexuadas, monstros sob todos os pontos de vista”.


A afirmação do médico francês Lucas Championnaire foi feita em 1875, quando não só a medicina, mas qualquer campo profissional, era terreno (ainda mais) hostil ao sexo feminino. Championnaire acreditava que, no momento em que pegassem num estetoscópio, deixariam de ser mulheres. O motivo?: “Leis fisiológicas”, escreveu ele. Imagine só o que se tornariam, então, se pegassem num bisturi.

Levou quase um século e meio para que, pelo menos para fins acadêmicos, a pergunta do francês recebesse resposta adequada: mulheres se tornaram excelentes cirurgiãs. Melhores, até, que seus colegas homens. Pelo menos, essa é a conclusão de um estudo realizado na Universidade de Toronto, no Canadá, e publicado há algumas semanas na revista científica British Medical Journal.


Segundo os achados do médico Raj Satkunasivam, pacientes de cirurgiãs mulheres operados na cidade canadense entre 2007 e 2015 tiveram 12% menos risco de morrer entre o procedimento e os 30 primeiros dias do pós-cirúrgico em relação a quem foi operado por médicos homens.

O estudo levou em conta todas as pessoas submetidas a cirurgias na cidade, no período analisado. Foram consideradas variáveis como idade e sexo dos pacientes e, no caso dos especialistas, idade, experiência e número de cirurgias realizadas. Assim, a pesquisa se concentrou nos casos de 104.630 pacientes e 3.314 cirurgiões, sendo 2.540 homens e 774 mulheres.


De acordo com Satkunasivam, a prática cirúrgica adequada depende de conhecimento, capacidade de comunicação, julgamento e técnica – habilidades que, segundo ele, diferem cirurgiões de outros especialistas. “Homens e mulheres praticam medicina de maneira diferente, mas existem ainda poucas pesquisas sobre o estilo de aprendizagem, a adequação de habilidades e os resultados de cirurgiões homens e mulheres”, escreveu.

Se ainda estivesse vivo, Championnaire teria engolido as palavras há um bom tempo: no Brasil, especificamente, desde 2011. Naquele ano, segundo estatísticas do Conselho Federal de Medicina e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) cruzadas pela Universidade de São Paulo, as vagas nas escolas de medicina passaram a ser predominantemente ocupadas por elas: 56% do total dos ingressantes no curso, em 2011, eram do sexo feminino. A proporção, no entanto, não se repete pelas especialidades.


“Prêmio de corte e costura?” No Colégio Brasileiro de Cirurgiões, por exemplo, que contabiliza o cadastro de mais de 7 mil especialistas no país, apenas 20% são mulheres. No diretório nacional da instituição, dos 21 integrantes, 19 são homens. “Já foi pior”, afirma, com bom humor, a secretária-geral do CBC e presidente da Comissão de Residência Médica, Elizabeth Santos. “Houve um tempo em que não tinha mulher alguma.”

A especialista lembra que não existe ainda no Brasil estudo semelhante ao realizado pela Universidade de Toronto, mas arrisca um palpite. “As mulheres são mais focadas, menos sujeitas a distrações quando se empenham em uma tarefa”, acredita. “Mas isso é meramente uma questão de opinião”, diz. Além da cadeira no CBC, a médica é cirurgiã-geral no hospital da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Desde 1980, quando ingressou na UFRJ, só passou a ter companhia feminina na equipe no ano passado. Hoje, com ela, são duas mulheres no staff cirúrgico do hospital, de um total de 30 profissionais.


Na Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular, apenas 47 dos 925 membros registrados são mulheres. Ao todo, a SBCCV estima que existam 2.220 cirurgiões cardiovasculares atuando hoje no país, dos quais apenas 205 do sexo feminino.


Em 2002, durante o congresso brasileiro da especialidade, a cirurgiã Magaly Arrais subiu ao palco como a primeira mulher na história da sociedade a ganhar um prêmio acadêmico no congresso da área. “A entrega foi em um jantar. Passei a noite inteira ouvindo piada de que o prêmio era de corte e costura”, recorda. No ano seguinte, deu um grito pelo empoderamento feminino diante de bisturis. Reuniu as mulheres cirurgiãs em uma sala cedida pelo evento e pediu que lutassem por respeito. Desde então, o encontro é anual.

Quinze anos depois, Magaly comemora o fato de que a representação feminina na sociedade médica tenha quase dobrado desde então, embora não chegue nem a 10%. Garante, no entanto, que piadas sobre corte e costura não são mais proferidas em jantar algum entre colegas de bisturi. E diz que ficou para trás o ranço machista nos congressos da especialidade que calavam suas colegas.


A partir de 2018, Magaly passa a integrar o quadro diretivo da sociedade médica, para o mandato do biênio que vai até 2020. É a primeira vez na história da SBCCV que a chefia da instituição contará com um nome feminino.

No Instituto Dante Pazzanese, em São Paulo, referência em cardiologia na saúde pública do estado, ainda hoje ela é a única mulher cirurgiã no staff, que conta com outras duas na equipe de assistência. “É uma luta diária. Se a gente não brigar, não vamos chegar a lugar nenhum”, ensina Magaly.


Diluído tanto entre colegas de jaleco quanto entre aqueles que precisam dos serviços prestados por esses especialistas. Magaly, por exemplo, lembra uma situação em que a esposa de um paciente, ao descobrir que havia sido ela a operar o marido após uma parada cardíaca, gritava pelo hospital: “Mas é mulher!”. “Depois ela me pediu desculpas. Os homens, em geral, aceitam melhor cirurgiãs mulheres”, comenta.

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